‘Bandersnatch’ – Os Problemas na nova Narrativa Interativa da Netflix

O novo filme interativo que pertence ao universo de Black Mirror quebra a experiência do espectador diversas vezes, mostrando que a rede de streaming ainda tem muito a aprender sobre o assunto.
Lançado no finalzinho do ano passado, o tão nomeado “inovador” filme interativo da Netflix
tem sido o assunto do momento, mesmo não sendo tão inovador assim. Ambientado nos
anos 80, o filme conta a história de Stefan, um garoto com o psicológico um tanto
sequelado, que está trabalhando no projeto da sua vida: um game com história interativa,
inspirado em seu livro-jogo favorito. E é logo aí que os problemas começam a aparecer. A
primeira tentativa de se produzir esse tipo de conteúdo, embora entregue uma experiência
relativamente satisfatória (em especial para quem não está acostumado com jogos ou
novelas que proporcionam esse mesmo recurso), falha em princípios muito importantes de
interatividade na narrativa, os quais seus semelhantes nos vídeo-games executam com
excelência. Bandersnatch não deixa de ser um jogo: é claro que sua experiência é diferente,
mas também são diferentes as experiências entre um jogo e outro.
O filme faz uso desse fato como um recurso diegético para explicar como funcionam as
escolhas do jogador: como casa escolha interfere nos seus caminhos, como não se pode
mudar o passado e outros diálogos similares que são nitidamente voltados a pessoa por
trás da tela. É uma ótima ideia de início e uma boa maneira de explicar o funcionamento de
algo que os assinantes da Netflix provavelmente não estão acostumados. Só seria uma
ideia melhor ainda, se não tivesse existido um “mini-tutorial” antes do filme começar, que
explica como tudo funciona. Esse momento antes do filme começar, sabota a primeira
impressão: histórias devem ter um começo interessante e impactante, o “momentum” que
existe quando apertamos o botão de play e vivemos aqueles segundos de expectativa até o
filme aparecer, são importantes para fisgar quem está assistindo. A existência de um tutorial
alheio ao filme (completamente dispensável, dado que o sistema de escolhas é super
simples e intuitivo) contribui para que o seu início perca o potencial que poderia ter. O
tutorial e as referências dentro do filme de como funciona a narrativa interativa não se
complementam, tornando as coisas um tanto redundantes já nos primeiros quinze minutos da cena.
Depois do começo um pouco lento e cheio de escolhas que só servem para você se
acostumar com o sistema (o que protagonista vai comer no café da manhã ou que música
escutar no caminho), começam as ramificações de verdade – ou, melhor dizendo, de
mentirinha. Um dos maiores, senão o maior problema de Bandersnatch é a falsa sensação
de escolha que nos é dada – esse é inclusive um dos pontos de maior polêmica. Após
assistir todo filme (qualquer que seja o final), percebe-se que o que ele quer passar como
moral da história é justamente a falsa sensação de controle que temos sobre a vida,
metaforizada sob o controle que teríamos numa história de Black Mirror. Isso está sendo
usado para justificar o fato de que algumas escolhas que fazemos simplesmente
interrompem o filme, sendo caracterizadas como escolhas erradas.
Alguns podem achar esse aspecto exatamente o que torna o filme genial e inesperado, mas
narrativamente falando, é justamente isso que acaba cortando a experiência interativa do
espectador-jogador. Ao trabalhar com narrativa interativa e ousar elevar a experiência do
seu usuário para a ação e não só expectação, assume-se a responsabilidade de fazê-lo
sentir-se recompensado e satisfeito com sua agência na história – seja com um plot twist,
uma morte ou qualquer coisa que indique que a escolha do agente teve valor. Bandersnatch
não cumpre esse quesito, quando ao invés de dar curso na história a partir da escolha do
jogador ela se interrompe e ele é obrigado a fazer uma escolha diferente e voltar umas
cenas para conseguir seguir em frente.
Na narrativa interativa, não é prudente existir um “certo” ou “errado” nas escolhas que
podem dar um fim na experiência. A ideia é estabelecer uma relação clara entre decisões e
consequências, de forma que o suspense e a adrenalina do jogador-espectador estejam
atrelados ao fato de que a história continuará independente do que ele decidir que aconteça
e ele terá de lidar com suas escolhas mesmo que elas tornem sua jornada mais difícil. Veja
bem: se em algum momento faz-se a escolha de matar o protagonista, a história deveria
seguir com ele morto, pois a satisfação viria de descobrir como seria o resto dos
acontecimentos se ele tivesse morrido, até que o enredo chegue em seu nítido final. Da
forma como foi colocado no filme-jogo, algumas escolhas apenas levam o usuário a ter que
refazer determinado caminho e ainda deixam a dúvida se a história terminou ali ou se ela só
foi interrompida de fato. O que nos leva ao próximo problema.
Algumas decisões tomadas durante a exibição do filme podem levar a uma interrupção da
história, como previamente dito. Algumas dessas interrupções deixam no ar uma sensação
de “término”, como se pudéssemos simplesmente parar de ver o filme naquele
momento,mesmo com todo o resto do enredo ainda por se resolver, como se fosse uma
história incompleta, um livro com páginas faltantes. Isso acontece majoritariamente quando
chegamos num beco sem saída após uma escolha e o aplicativo nos joga pra telinha de
“tente novamente” que passa a exibir um botão de “Ir para os créditos” reforçando essa
noção de que a história pode terminar ali, mesmo sem pé nem cabeça. É uma noção básica
de narratividade o fato de que toda a história precisa ter um final discernível. Se não conseguimos entender se uma narrativa acabou ou não ou qual foi o final definitivo da
história que tem múltiplos caminhos, esse princípio acaba sendo quebrado e a confusão do
jogador pode invalidar toda a experiência por conta da frustração.
Entenda que finalizar uma história não significa amarrar todos os pontos ou soltar um “E
viveram felizes para sempre”, mas simplesmente concluir uma ideia – mesmo que ela deixe
gancho para outras ou continuações da mesma. Como em Bandersnatch não dá para saber
se a história terminou ou não de fato (até de repente aparecerem o créditos finais de forma
aleatória após alguma escolha definitiva), ao invés de termos uma linha de enredo completa
com começo, meio e fim que podemos compartilhar com os outros e notar as diferenças,
apenas ficamos passeando de uma ramificação para outra até eventualmente não
conseguirmos mais pois a Netflix decidiu que os créditos seriam bem colocados ali.
Sem um final concreto e definitivo para que o jogador sinta que sua experiência foi
completa, passear pelos outros caminhos da narrativa antes de terminá-la é inevitável.
Contudo, isso prejudica outro aspecto muito importante da narrativa interativa que é o
replayability. O replayability é um conceito que descreve o quanto algum jogo é convidativo
a ser jogado novamente, mesmo depois de ter tido a sua experiência principal concluída. As
narrativas não lineares são as apostas de muitos jogos para fazer com que o jogador tenha
vontade de passar por tudo novamente, “rejogando” e explorando tudo inúmeras vezes, já
que se ele mudar suas escolhas no enredo ele terá finais diferentes e a jornada será outra.
Em Bandersnatch, o replayability é prejudicado pois várias escolhas tem que ser trocadas já
na primeira vez que o jogador decide experimentar o filme, sem ao menos ele ter acesso a
algo que ele reconheceu como “o final”. Já que logo na primeira vez consegue-se passear
pelas ramificações e descobrir as variações de enredo, o usuário dificilmente vai voltar
algum outro dia desde o começo e assistir tudo na íntegra novamente – e mesmo se ele
fizer isso, a história não vai se tornar completamente diferente. Perde-se com isso uma
grande vantagem da narrativa interativa, que quando bem explorada, contribui inclusive
para a melhor rentabilidade de um jogo e não só para seu tempo de vida.
Apesar de tudo, a atuação e roteiro do filme foram bem colocados e estão ali com a melhor
das intenções. É por isso que não deixa de ser uma experiência agradável tanto para
novatos quanto para veteranos nesse tipo de mídia. Seus aspectos em jogabilidade podem
ter grandes problemas, mas ele ainda funciona muito bem como um filme que irá entreter a
família.
Inclusive, não podemos deixar de considerar que essa foi a primeira tentativa de um serviço
de streaming de entregar um conteúdo tão pesado e complexo, sem problemas técnicos,
para milhões de pessoas simultaneamente ao redor do mundo. Para isso, é preciso tirar o
chapéu. Espera-se que a Netflix continue tentando investir em narrativas interativas para
conseguir melhorar esses pontos e trazer um trabalho de maior qualidade para seu público –
em especial o de Black Mirror, que conseguiu um título muito especial como parte de sua
série e sua dose periódica de “metaforizações sobre a vida contemporânea que fazem com
que você repense seus conceitos”.
Essa matéria foi escrita por:
Izadora Lima

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