Iniciando no Fate – Criação de Cenário

Olá!
Continuando nossa série “Iniciando no Fate”, vamos tratar da parte de Criação de Cenários e Personagens.
Como muitos RPG, Fate traz uma grande quantidade de suplementos de cenários: sejam eles jogos fechados como Kaiju Incorporated, Uprising: The Dystopian Universe RPG ou Jadepunk ou módulos acessórios dependentes do Fate Básico ou do Acelerado como a série Worlds of Adventure, Tachyon Squadron, Bukatsu! ou Projeto Memento, todos eles trazem suas peculiaridades específicas para o tipo de cenário ou jogo que se aplicam, de modo que jogar Loose Threads, Masters of Umdaar, Weird World News ou Nest trazem regras e propostas completamente diferentes umas das outras.
Mas a parte que pode ser mais interessante é você mesmo criar seu estilo de jogo, baseado no que você e seus amigos gostam e/ou estão interessados em jogar. Desse modo, pode-se chegar a um cenário que seja exatamente aquilo que seus jogadores desejam, funcionando como base para o jogo, que pode receber novas regras e informações conforme a narrativa emergente e compartilhada fizer as coisas virem à tona.
Embora existam vários mecanismos interessantes de criação de cenário em Fate, sobre os quais falaremos em artigos futuros, aqui utilizaremos o método sugerido no Capítulo 2 do Fate Básico, por se tratar de algo que já está disponível sem a necessidade de comprar livros ou consultar materiais externos, já sendo parte do próprio Fate. Vamos utilizar esse cenário a ser criado como fonte dos exemplos de personagem e por aí afora.

Definindo o ambiente ao redor dos personagens

Nesse primeiro passo, definimos o mundo ao redor do qual os personagens estarão. Ainda que eles sejam os protagonistas, o mundo não necessariamente gira ao redor deles. Todo tipo de coisa pode (e provavelmente irá) acontecer ao redor deles, envolvendo-os em coisas que podem estar além da compreensão deles ou colocá-los contra a parede com decisões morais sérias a tomarem e dramas interessantes a ocorrerem.
Como no próprio Fate é aconselhado, se você não tiver adaptando algo que já exista, não tente criar muitas coisas: as respostas para muitas perguntas surgirão conforme os eventos forem ocorrendo na aventura. Isso é a Narrativa Emergente: você pode ter até uma ideia de onde as coisas vão, mas o caminho e os resultados de tais eventos surgirão na aventura.
E não tenha medo de usar tropos ou clichês: como se diz, clichês são clichês porque eles Funcionam. Não os use de muleta, mas ao mesmo tempo não tenha receio de recorrer a eles quando necessário. E isso pode ser um bom ponto de partida para criar um cenário: basta ver os tropos de séries que você gosta no TVTropes.org para ter uma noção de como utilizar os mesmos em aventuras de Fate[1].
Mateus, Júlia, Ricardo e o narrador Lúcio se juntam para uma nova campanha de RPG. Eles estão meio cansados do ambiente medieval, mas querem algo com muita fantasia. Mateus relembra de como gostava das conspirações de Arquivo X, então menciona que quer jogar algo com “Investigação, Conspirações e Mistério”, e Júlia anda em uma vibe de Contos de Fadas desde que começou a ler Fables e assistir Once Upon A Time e gosta da ideia de “Magia em um mundo em que ela é oculta”.
Ricardo gosta da ideia de colocar seus personagens como sendo guardiões de algum segredo tão estranho que nem eles mesmos saibam do que se trata totalmente, e coloca que quer alguém que “Faça as coisas erradas pelos motivos certos”. Todos concordam com isso e seguem adiante.
[1] Alerta: você provavelmente perderá horas e horas de produtividade no mesmo. Consuma com moderação

A Grandeza do Jogo

Agora os jogadores deverão decidir a Grandeza do jogo, algo que dará uma ideia de o quão épica será a escala do jogo. Não há problema nenhum em decidir algo agora que aparente não ser uma boa ideia: sempre é possível ajustar isso no futuro, quando as coisas se complicarem.
Em Fate pode-se dizer que as Grandeza seria Pessoal ou Épica:
  • Uma Grandeza mais Pessoal envolve resolver problemas mais locais ou eventos cujo drama seja mais pessoal e íntimo;
  • Uma Grandeza Épica envolveria dilemas de grande porte, afetando às estruturas do mundo de maneiras incríveis, os personagens podendo salvar ou destruir nações;
Júlia sugere que as ideias que eles estão tendo leva a um cenário ao estilo Fantasia Urbana, coisas como Lúcifer ou The Librarians, onde os dilemas dos personagens apareçam mais que o famoso “vamos salvar o mundo”, ainda isso possa acontecer em momentos adequadamente dramáticos. Mesmo que existam poderes incríveis, seus impactos não são tão diretamente visíveis. Como todos andam meio cansados do estilo “pew-pew-pew” de aventuras épicas, uma campanha mais focada nos personagens e em seus dilemas parecer ser bem legal para o que eles querem.

As Questões do Cenário

Aqui chega um momento importante, que é definir as Questões do Cenário. As Questões são exatamente os problemas que estão fazendo as coisas acontecerem e que os personagens deverão resolver (ou piorar) para levar as coisas adiante. Em termos de Fate, as Questões são Aspectos de Cenário que poderão ser usados pelos jogadores ou contra os jogadores conforme a necessidade. Por isso, deve-se anotar os mesmos.
Em termos de Fate, existem dois tipos de Questões:
  • Questões Presentes são as coisas que estão acontecendo ou já aconteceram, mas que ainda estão influenciando no cenário. O que tais questões significam e o quanto isso pode ser resolvido ou pode se complicar em caso de problemas será descoberto no jogo, mas essas Questões já estão a algum tempo acontecendo por aí.
  • Questões Iminentes são problemas que estão começando a aparecer: eles ainda não afetam EM TEORIA o cenário, mas a ideia é que, caso nada ocorra de maneira diferente, esse é o caminho para o qual as coisas vão, para o bem ou para o mal;
Normalmente, um cenário de Fate deve ter quatro Questões, duas de cada tipo: colocar mais Questões de um tipo pode aumentar o impacto das coisas, e colocar menos vai fazer com que o as coisas pareçam estar sempre indo para uma espécie de solução final ou que as coisas possam tender a um caos a qualquer momento.
O grupo pensa que é interessante que exista apenas uma grande Questão Iminente, já que a ideia é que algo pode estar vindo mais sério, um ponto de virada para o qual o mundo está se encaminhando. Como eles querem jogar já no Século XXI, mas com ainda ideias meio milenaristas, eles debatem muito esses conceitos até que em algum momento Júlia dispara “As Brumas de Avalon irão se desfazer!”. Todos olham para ela e sorriem com a ideia: o retorno de algo místico sempre apimenta as coisas em Fantasia Urbana, e se isso é bom ou ruim será tema para ser descoberto nas aventuras.
Lúcio, o Narrador, decide que é legal os personagens começarem o jogo meio sem saber que diabos está acontecendo. Ele pensa que uma questão interessante seria Poderes em Troca de Memórias: os personagens receberam uma série de poderes fantásticos interessantes, mas não sabem de quem, por que, para que e o quanto isso os afetou. Eles poderão até ter memórias difusas sobre o que aconteceu com eles, mas nada que eles possam garantir de maneira certa e cega que é verdade.
De carona com isso, Ricardo acha interessante que os poderes sejam baseados em Fábulas e Contos de Fadas. Isso permite colocar um ar de mistério e fantasia. Além disso, traz ao jogo (como Aspecto), a possibilidade de eventos de Contos de Fadas se replicarem em nosso mundo moderno, algo que aparenta ser interessante a todos. Lúcio gosta da ideia, pois isso se encaixa com sua Questão de Poderes em Troca de Memórias, implicando nos personagens procurarem uma explicação de por que receberam esses poderes baseados em Contos de Fadas e o que isso pode pedir (ou ter pedido) de preço, já que em Fábulas e Contos de Fadas nada acontece por acaso.
Mateus decide que é uma boa ideia colocar algo mais pé no chão: ele não quer algo ao estilo Dresden Files onde os personagens jogadores parecem meio que deslocados do mundo real. Ele decide então criar uma Questão de Meu iPad fica do lado da Excalibur, representando a ideia de que os personagens têm acesso tanto aos itens e conhecimentos mais tecnológicos quanto a itens mágicos e fantásticos. Isso é bem legal, todos pensam, já que também pode implicar no fato de que existe sempre a possibilidade de personagens fantásticos quererem coisas mundanas, mas que seriam complicadas de conseguir: o que fazer quando o Gigante do Pé de Feijão descer à terra para assistir a final da World Series de Basebol com os NY Giants? E sempre existe aquela: quem vence, El Santo ou Godzilla?
As Questões desse cenário são, portanto:
  • Presentes:
  • Poderes em Troca de Memórias
  • Fábulas e Contos de Fadas
  • Meu iPad fica do lado da Excalibur
  • Iminentes:
  • As pessoas que estão percebendo a Verdade
  • !As Brumas de Avalon irão se desfazer!”
Decidido isso, coloque algumas informações sobre cada uma das Questões, como forma de dar uma noção do que cada uma delas e o que elas envolvem. Isso pode levar a gerar novos Aspectos que pode ser úteis, como Questões dentro das Questões.
Lúcio conversa mais um pouco e faz algumas anotações relacionadas ao que foi debatido e levou às questões. Em especial, os Poderes em Troca de Memórias é uma coisa que demandou maior análise, em especial quando pensa-se na ideia de que eles veem de Fábulas e Contos de Fadas.
Eles chegam a uma conclusão importante: eles afetaram bastante às pessoas, já que não apenas sua memória foi nublada, mas seu próprio comportamento foi afetado, ainda que sutilmente: aparentemente esses poderes, que chamam de Escopo depende da personalidade de cada um, que deve transparecer um personagem de Contos de Fadas. Aparentemente, quanto mais fortes os personagens ficarem nesse Escopo, mais próximo do personagem eles estarão, uma balança fina onde eles podem perder sua própria personalidade em nome de um estereótipo formado nos contos de fadas.
Isso leva Lúcio a criar uma Nova Questão ligada aos Poderes em Troca de Memórias: “Quanto eu sou eu e quanto eu sou a Fábula?”. Todos concordam que isso parece bem interessante, e ficam com isso
  • Poderes em Troca de Memórias
  • Questão: “Quanto eu sou eu e quanto eu sou a Fábula?”
  • Fábulas e Contos de Fadas
  • Oferecem poderes sem explicação e demandam serviços
  • Meu iPad fica do lado da Excalibur
  • Magia e Tecnologia podem coexistir e todos podem usar ambos
  • As pessoas que estão percebendo a Verdade
  • Manter o controle ou deixar para lá?
  • “As Brumas de Avalon irão se desfazer!”
  • Qual o desejo deles?
Perceba que as anotações, à exceção da Questão nova “Quanto eu sou eu e quanto eu sou a Fábula?” são apenas algumas anotações rápidas que permitem dar uma clareada no que pode acontecer no futuro, mas não são aspectos per se. Obviamente, conforme a campanha for evoluindo, você pode fazer com que algumas dessas anotações possam gerar novas questões e Aspectos relevantes, conforme as coisas acontecerem.

Rostos e Lugares

Agora, é hora de os jogadores e o Narrador começarem a associar nomes e lugares a essas questões ou a coisas relacionadas às mesmas, pois isso oferecerá um ponto de partida para coisas com as quais os personagens terão que se envolver no cenário.
Claro, que como tudo, isso é um ponto de partida: com os eventos dos jogos, as coisas ficarão mais claras e poderão ser reescritas.
No caso de Rostos, eles serão NPCs que terão que receber algum tipo de Aspecto que os envolva com a trama em questão. No caso de Locais, isso não é necessário de imediato. Em ambos os casos, entretanto, é necessário que os personagens digam um pouco sobre o que eles acham das coisas como parâmetros iniciais.
Primeiramente, eles decidem que tudo ocorrem em Nova York, com os personagens ainda tentando se relocalizar das experiências estranhas com as Fábulas que lhes concederam Poderes em Troca de Memórias + Isso leva eles a pensarem em usar Strawberry Fields, dentro do Central Park, como ponto de encontro do grupo, já que foi lá que eles foram encontrados meio perturbados e com roupas totalmente estranhas, de tecidos de materiais e construções que eles apenas conseguem definir como de Contos de Fadas .
Isso leva a Lúcio pensar em um NPC recorrente que pode lhes ajudar (ou mão) no processo de se readaptar e entender o que aconteceu com eles. Ele é conhecido como Sr. Tumnus e parece um mendigo meio louco que mora em Strawberry Fields. Entretanto, ele Aparenta Saber mais do que Diz já que não ficou chocado com o cheiro do ozônio e as roupas estranhas e tudo relacionado ao retorno dos personagens;
O que faz com que os personagens precisem de uma “base de operações”. Como Júlia revela que tem o interesse em ser uma espécie de Fada Madrinha do grupo, ela decide que seu personagem tem um Flat no Edifício Dakota que fica ao lado. O Ar de Mistério que envolve o mesmo torna tudo ainda mais interessante, já que tem o lance de ter sido a casa de John Lennon na América até ele ser morto por Mark Chapman, e toda a questão do filme O Bebê de Rosemary, torna interessante que a base dos personagens seja lá.
O que leva à questão iminente das pessoas que estão percebendo a Verdade. Mateus afirma que seu personagem, que será um ex-detetive durão, tem um amigo investigador com o qual ele conversou sobre esses eventos. O nome dele é Jeremy Chang e parece curtir uns lances de Misticismo, C’hi Kung e Feng Shui. Apesar das risadas iniciais, algo aparenta ter a mais na jogada.
Por fim, eles decidem colocar uma Face para a questão iminente de que “As Brumas de Avalon irão se desfazer!”: uma estranha mulher, que se apresentou como Morgause, apareceu diante deles quando eles apareceram no Strawberry Fields. Ela aparenta saber muito mais do que diz, mas eles decidem que não é hora de colocar Aspectos sobre ela, deixando por conta de Lúcio ir preenchendo as lacunas conforme os acontecimentos.
As Faces então seriam:
  • Sr. Tumnus, um mendigo meio louco que vive em Strawberry Fields
  • Aparenta Saber mais do que Diz
  • Jeremy Chang, um investigador da polícia de Nova York
  • Misticismo, C’hi Kung e Feng Shui
  • Morgause, uma mulher estranha que apareceu quando eles “voltaram”
E os Locais:
  • Nova York, onde tudo acontece
  • Strawberry Fields, onde eles “voltaram” à nossa realidade e onde se encontram
  • Flat no Edifício Dakota que funciona como base de operações dos personagens
  • Ar de Mistério
Com isso, eles podem começar a planejar melhor as coisas, preenchendo alguns detalhes sobre como a campanha funcionará.
Eles pensam que terá que ter algum tipo de magia, até por ser Fantasia Urbana, mas como os poderes mágicos dos personagens serão pequenos e restritos, eles decidem deixar Lúcio pensar em algo mais profundo sobre magia para o futuro, conforme a necessidade.
Entretanto, os poderes de Escopo serão necessários de serem pensados. Lúcio sugere que cada um indique como Permissão ao criar seus personagens o Escopo do personagem, que tipo de Fábula ou personagem de Contos de Fadas do qual herdaram poderes. Isso torna interessante até pela Questão gerada pelos Poderes em Troca de Memórias “Quanto eu sou eu e quanto eu sou a Fábula?”. Desse modo, ele poderá Forçar tal Aspecto para fazer o comportamento dos personagens lembrar os Contos que os mesmos representam, mas os personagens poderão o Invocar para obter habilidades ou conhecimentos fora do que seria normal.
Como Custo, ele decide que os personagens podem gastar Façanhas para ganharem poderes ou capacidades especiais conforme a necessidade, baseado no seu Escopo. Ele não oferece nenhuma Façanha adicional, mas decide que trabalhará com o padrão do Fate Básico de 3 Façanhas Gratuitas + 3 de Recarga, podendo baixar 1 de Recarga para obter Façanhas Extras, ao custo padrão de 1 de Recarga por Façanha, com o mínimo de 1 de Recarga.
De resto, ele pensa apenas em adicionar uma Perícia adicional, Fábulas que funciona como uma forma de entender o conhecimento dos personagens em relação aos Contos de Fadas e aos eventos aos quais foram colocados quando receberam (provavelmente a contragosto) o seu Escopo. Ele decide que essa Façanha basicamente funciona como um paralelo de Conhecimentos, sem muitas diferenças.
Por fim, ele muda um pouco a ideia do Trio de Fases, sendo que ele chamará a Fase Um de Abdução e as outras duas Fases de Retorno e Adaptação, indicando os momentos em que os personagens foram levados da nossa realidade, o que aconteceu quando eles voltaram e como eles lidaram com o que se tornaram.
Antes de os jogadores criarem seus personagens, Lúcio decide chamar a campanha de “Fae Guardians – Guardiões das Fábulas”. Um nome bem clichê, mas funcional.

Conclusão

Como pode-se ver, criar um cenário em Fate não é algo exatamente complicado: a maior parte das coisas podem ser resolvidas apenas escrevendo informações na Ficha de Criação de Jogo ou em algum bloco ou cartões que você possa sempre ter como referência. Não se faz necessário criar tudo: você pode ir preenchendo detalhes conforme os acontecimentos. O mesmo vale para detalhes sobre vilões e afins: pode ser mais interessante deixar que a narrativa emergente traga essas informações, e depois todos trabalharão melhor tais informações.
No próximo artigo, falaremos sobre a Criação do Personagem per se, sobre como distribuir perícias, como definir seus Aspectos e Façanhas, e cuidados a se ter ao utilizar cenários prontos do Fate, em especial aqueles que tenham regras especiais.
Até lá… Role +4!
Essa matéria foi escrita por:
Fábio Emilio Costa

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